Oi Zé...
Todos os dias, ao meio-dia, um pobre velho entrava na igreja e rapidamente saía.
Um dia, curioso, o sacristão perguntou-lhe o que vinha fazer.
- Venho rezar - respondeu o velho.
- Mas é estranho - disse o sacristão - que você consiga rezar tão depressa.
- Bem - retrucou o velho - eu não sei recitar aquelas orações compridas.
Mas todo dia, ao meio-dia, eu entro na igreja e só falo: "Oi Jesus, é o Zé".
Num minuto já estou de saída. É só uma oraçãozinha, mas tenho certeza de que ele me ouve.
Alguns dias depois o Zé sofreu um acidente e foi internado num hospital.
Na enfermaria passou a exercer uma grande influência sobre todos: os doentes mais tristes tornaram-se alegres.. muitas risadas passaram a ser ouvidas.
Zé - disse-lhe um dia a irmã - os outros doentes dizem que foi você quem mudou tudo aqui na enfermaria. Eles dizem que você está sempre tão alegre...
- É verdade, irmã. Estou sempre alegre. É por causa daquela visita que recebo todos os dias. Me faz feliz.
A irmã ficou atônica. Já tinha notado que a cadeira encostada na cama do Zé estava sempre vazia.
O Zé era um velho solitário, sem ninguém.
- Que visita? A que horas?
- Todos os dias - respondeu Zé - com um brilho nos olhos. Todos os dias, ao meio-dia. Ele vem, fica ao pé da cama e quando olho para Ele, sorri e diz:
"Oi Zé, é Jesus".
terça-feira, janeiro 22
OIIIIIIIIIII...
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo. Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo
FERNANDO PESSOA
FERNANDO PESSOA
OLHOS DO CORAÇÃO
Certa vez, dois homens seriamente doentes estavam na mesma enfermaria de um grande hospital. O cômodo era bastante pequeno, e nele havia uma janela que dava para o mundo. Um dos homens tinha, como parte do seu tratamento, permissão para sentar-se na cama por uma hora durante as tardes (algo que ver com a drenagem de fluido de seus pulmões).
Sua cama ficava perto da janela. O outro, contudo, tinha de passar todo o seu tempo deitado de barriga para cima. Todas as tardes, quando o homem cuja cama ficava perto da janela era colocado em posição sentada, ele passava o tempo escrevendo o que via lá fora. A janela aparentemente dava para um parque onde havia um lago. Havia patos e cisnes no lago, e as crianças iam atirar-lhes pão e colocar na água barcos de brinquedo.
Jovens namorados caminhavam de mãos dadas entre as árvores, e havia flores, gramados e jogos de bola. E ao fundo, por trás da fileira de árvores, avistava-se o belo contorno dos prédios da cidade.
O homem deitado ouvia o sentado descrever tudo isso, apreciando todos os minutos. Ouviu sobre como uma criança quase caiu no lago, e sobre como as garotas estavam bonitas em seus vestidos de verão.
As descrições do seu amigo eventualmente o fizeram sentir que quase podia ver o que estava acontecendo lá fora...
Então, em uma bela tarde, ocorreu-lhe um pensamento: Por que o homem que ficava perto da janela deveria ter todo o prazer de ver o que estava acontecendo? Por que ele não podia ter essa chance?
Sentiu-se envergonhado, mas quanto mais tentava não pensar assim, mais queria uma mudança. Faria qualquer coisa!
Numa noite, enquanto olhava para o teto, o outro homem subitamente acordou tossindo e sufocando, suas mãos procurando o botão que faria a enfermeira vir correndo. Mas ele o observou sem se mover... mesmo quando o som de respiração parou.
De manhã, a enfermeira encontrou o outro homem morto, e silenciosamente levou embora o seu corpo.
Logo que pareceu apropriado, o homem perguntou se poderia ser colocado na cama perto da janela. Então colocaram-no lá, aconchegaram-no sob as cobertas e fizeram com que se sentisse bastante confortável.
No minuto em que saíram, ele apoiou-se sobre um cotovelo, com dificuldade e sentindo muita dor, e olhou para fora da janela. Viu apenas um muro todo escurecido pelo tempo...
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